O que dizer de um filme rodado no Brasil em 1979, em que temos cenas de sexo ao som de Belchior, palavrões em 90% dos diálogos e um protagonista com um carisma-cafajeste único?
Fácil, ele se encaixa perfeitamente aqui, nesse blog.
“Eu Matei Lúcio Flávio” (Idem, Bra, 1979) é um filme histórico, obrigatório para qualquer cinéfilo de plantão. Obrigatório porque é um dos filmes mais imorais, violentos e sádicos já feito nesse Brasilzão doido. E mais: tem Jece Valadão no papel principal. O que transforma qualquer filme, num GRANDE FILME.
E esse é, sem sombra de dúvida, um grande filme, daqueles que realmente surpreendem o espectador. O roteiro tem suas falhas, sim. Mas nada que ofusca o brilhantismo da obra. E que obra!
Dirigido por Antonio Calmon (hoje roteirista de novelas chinfrins da Rede Bobo) o filme narra de maneira romanceada a história real do policial Mariel Maryscötte de Mattos. Uma figura que não saia das páginas policiais no Rio de Janeiro da década de 70, integrante do famoso Esquadrão da Morte da polícia carioca.
Com uma mensagem extremamente ultra-direitista, o lema “bandido bom é bandido morto” aqui é levado a sério e vai além disso. Porém, não se engane e não assista ao filme com um “certo preconceito”, faça o contrário, assista-o analisado friamente à época em que foi produzido. E ainda, tendo em vista que esse é, de fato, um bom policial nacional. Lembre-se que hoje nos cinemas temos como exemplo o bisonho “Segurança Nacional” (Idem,Bra,2010) que a crítica definiu como “o maior desastre do cinema nacional dos últimos tempos.”
"Eu matei Lúcio Flávio" veio de carona no filme de 1976 do diretor Hector Babenco, “Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia” (Idem, Bra, 1976), porém com uma grande diferença: no filme de Calmon, Lúcio Flávio é apenas um mero coadjuvante, enquanto no de Babenco ele é o personagem principal. Calmon teve mais coragem e ousadia ao fazer seu filme, digamos, “menos pop” e que é um verdadeiro tapa na cara de quem o assiste. Diferente do de Babenco, um filme-denúncia, porém sem a mesma ousadia (alerta: opinião pessoal).
Explicação: Lúcio Flavio foi o bandido fodão dos anos 70 no Rio de Janeiro, uma espécie de Fernandinho Beiramar da época, para se ter uma noção. No filme ele é interpretado por Paulo Ramos, porém aparece muito pouco. Sua existência na história é o que mantém o roteiro de pé, deixando o espectador a espera do combate final: Mariel x Lúcio Flávio.
Mas voltemos ao miolo do filme porque tem gente achando que ando escrevendo demais...
A película mal começa e Mariel (Jece Valadão) já arrebenta, sem dó nem piedade, três manés que estão falando alto durante um show em uma boate da qual ele é segurança, ou, como ele diz, “diretor de disciplina”. Além de exercer essa atividade na noite, Mariel é também salva-vidas durante o dia na praia Copacabana.
Ele acaba por salvar a vida de um velho suicída que tentava morrer afogado, e é aí que conhece a mulher por quem se apaixonaria, a filha do velho, Margarida Maria (Monique Lafond, aqui bela). Uma prostituta maluca que toma pico por Copacabana à fora, e que tem uma forte ligação na história, apesar de os roteiristas, Alberto Magno e Leopoldo Serran, aproveitarem muito mal isso. Já se prepare para uma história muitas vezes nada explicativa. Esse é o grande defeito do filme!
Então acontece um dos diálogos mais impagáveis da película, numa cena mais que hilariante. O velho suicída olha para Mariel e diz: “quantas pessoas você já salvou, valentão?”, “47”, ele responde prontamente, depois o velho homem pede para que ele então salve a vida de sua filha que está “perdida nos abismos da loucura”, o que Mariel aceita. Mas antes o velho diz: “Olha bem para minha filha, é uma puta não é? Tá escrito na cara dela”. Num jeito exclusivamente brasileiro, sincero e visceral. Essa foi uma das muitas cenas que fiz questão rever umas 4 vezes e que fazem o filme realmente valer a pena.
Depois dessa introdução emocionante (e hilariante), Mariel, recebe um convite para tentar entrar na polícia. O que ele consegue, como o melhor aluno da turma. Tinha que ter o clichê, né?
Daí pra frente as coisas começam a esquentar. Mariel pega alguns “bicos”de segurança de políticos até ser chamado para fazer parte do "Esquadrão de Ouro" da polícia, um grupo com os melhores policiais da cidade com carta branca para varrer o crime da cidade do Rio de Janeiro.
Se você ainda não assistiu (o que está esperando!?) e quer mais motivos para assisti-lo, vou descrever em riqueza de detalhes outra cena antológica.
Mariel e seu parceiro interpretado pelo ainda novo, e nem por isso menos fantástico Anselmo Vasconcelos (que hoje é um espécie de ator-fixo no Zorra Total, eca!) recebem um chamado de uma ocorrência em um farmácia. Detalhe: a viatura deles é um fusca amarelo e conversível.
Enquanto nossos heróis não chegam para limpar a cena do crime, três malacos tocam o terror no local. Roubando anfetaminas e remédios, até que um dos assaltantes resolve estruprar a recepcionista e a leva para os fundos. Os outros dois marginais ficam torturando um velho (com uma cara engraçadíssima) e uma criança.
Corta.
De novo, a bela recepcionista e o bandido, agora apenas os dois. O malaco diz: “eu quero pouco papo e muita ação” ela atende de bate-pronto. Tira a roupa e surpreendentemente já está sem sutiã (hahaha!), então pega o bandido de surpresa lhe dando uma “agulhada”. Só que de nada adianta. O rapaz a estupra (ou penetra) com a própria arma, o que causa uma certa sensação enjoativa, numa cena que dói nos olhos do espectador. É ver pra crer, ou ver para sentir.
Mas a festa termina com a chegada de Mariel e seu parceiro ( o qual os roteristas não se preocuparam em nomear), os dois já chegam metendo bala pra tudo quanto é lado e a cena termina com Mariel dando uns dez tiros nos cornos do indivíduo que enfiou o cano na moça. Incrível é o prazer de matar dele, desde o olhar ao sorriso de um verdadeiro filho da puta.
O Mariel de Jece é caracterizado com maestria, retratado como um homem ávido de fama, nobreza e publicidade. Dono de um sadismo implacável. O que notamos logo no início, enquanto ele transa com uma guria (uma das dez durante todo filme) ao som de “A divina comédia humana” de Belchior, e se olhando no espelho solta a pérola: “Mariel, você é o maior”. Depois disso para mim, o brega virou algo genial.
Mesmo com todas as canalhices, o espectador, cria empatia com o personagem, porque além da atuação fantástica de Jece, Mariel um é conquistador que cativa o público, o empolga pra valer. O vejo como um super-herói da época, ou uma espécie de Charles Bronson tupiniquim, só que com mais sangue nos olhos e muito mais comedor.
E tem neguinho aí achando “Tropa de Elite” (Idem, Bra, 2007) inovador, é mole? Calmon fez o mesmo, só que 28 anos antes e pergunte ao Padilha se ele não viu "Eu Matei Lúcio Flávio" antes de produzir o seu longa sobre o BOPE.
"Eu Matei Lúcio Flávio" também foi produzido por Jece Valadão, que era amigo pessoal de Mariel, o que além do talento, ajudou a tornar a sua atuação um primor. Confesso que conheço pouco da trajetória de Jece, mas o que venho descobrindo para fazer esse artigo já é mais do que suficiente para me tornar seu fã de carterinha.
Sem mais delongas, estamos diante de uma obra pró-Estado, facista e imoral. Com música brega, muito sexo, sangue e violência. O que, por incrível que pareça, dá certo e empolga. E, para quem quer saber mais sobre a época e Mariel, recomendo o livro: “Barra Pesada” do jornalista Octavio Ribeiro que faz uma releitura da criminalidade no Brasil, passando pela época do nosso querido Mariel. Vale a pena.
Mesmos se você não gostou de tudo o que foi argumentado a acima, vale a conferida só por poder ver atores como: Otavio Agusto, Vera Gimenez ( mãe da mãe do filho do Mick Jagger), Nildo Parente e Fábio Sabag em papéis diferente dos que você está acostumado a ver.
E para finalizar: uma dica. Uma boa sessão de cinema é assistir a três filmes do período e com o mesmo conteúdo “sutíl”. Comece com “República dos Assassinos” (Idem, Bra, 1979), também de 1979, e que aborda o mesmo tema: o Esquadrão da Morte. Só que aqui o papel principal fica por conta de ninguém menos que o mestre Tarcísio Meira. Na sequência, para não perder o ritmo, siga com "Eu Matei Lúcio Flávio". Para finalizar em grande estilo recomendo “O Torturador”(Idem, Bra, 1981) com Jece Valadão mandando bronca e até um padre que cheira cocaína. Impagável!!!
Ah, bons tempos do cinema nacional.
Léo Castelo Branco
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Ficha Técnica
Eu Matei Lúcio Flávio (1979, Brasil)
Direção: Antonio Calmon
Elenco: Jece Valadão, Monique Lafond,
Anselmo Vasconcelos, Paulo Ramos,
André Di Biasi e Maria Zilda.